Análise crítica da Lei do Superendividamento
Análise crítica da Lei do Superendividamento De acordo com um levantamento recente da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) 1 , o número de brasileiros endividados bateu um novo recorde no mês de julho/2022, alcançando o percentual de 78% de famílias brasileiras, sendo que a maior parte dessas dívidas assumidas é […]
Análise crítica da Lei do Superendividamento
De acordo com um levantamento recente da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) 1 , o número de brasileiros endividados bateu um novo recorde no mês de julho/2022, alcançando o percentual de 78% de famílias brasileiras, sendo que a maior parte dessas dívidas assumidas é decorrente do uso do cartão de crédito.
O número de inadimplentes, por sua vez, em junho/2022, chegou a quase 67 milhões, conforme Mapa da Inadimplência e Renegociação de Dívidas no Brasil 2 elaborado e disponibilizado pelo SERASA.
Apesar de ter alcançado novos picos no ano de 2022, o endividamento tem sido uma realidade nas famílias brasileiras há muitos anos. O problema é complexo e não tem solução simples ou de curso prazo.
No entanto, em 2021, o Congresso deu importante passo rumo à solução, editando a Lei nº 14.181 para tratar especificamente da disciplina do crédito ao consumidor e da prevenção e tratamento do superendividamento.
A nova legislação alterou o Código de Defesa do Consumidor (CDC) para incluir a educação financeira como um objetivo da Política Nacional das Relações de Consumo, autorizando ao poder público a instituição de (i) mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento e da proteção do consumidor pessoa natural; e (ii) núcleos de conciliação e mediação de conflitos oriundos desse superendividamento.
Além disso, incluiu como direitos básicos do consumidor “a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre
1 Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor – CNC – agosto/22.
2 https://www.serasa.com.br/assets/cms/2022/MKTECS-965-Mapa-da-inadimplencia-JUNHO.pdf
outras medidas”; “a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito”; e “a informação acerca dos preços dos produtos por unidade de medida, tal como por quilo, por litro, por metro ou por outra unidade, conforme o caso”.
Da prevenção e tratamento do superendividamento
Uma das principais alterações promovida pela Lei nº 14.181/2021 foi a inclusão no CDC do Capítulo VI-A que dispõe especificamente sobre os procedimentos para prevenção e tratamento do superendividamento.
Para delimitar o capítulo e a sua aplicação, a nova legislação conceituou o superendividamento como sendo a impossibilidade manifesta pelo consumidor (com base na boa-fé) de pagar a totalidade de dívidas por ele assumidas sem comprometer o seu mínimo existencial.
Estão incluídas nessas dívidas todos os compromissos financeiros assumidos, inclusive operações de crédito, compras a prazo e prestações de serviços continuadas. Por outro lado, as dívidas contraídas de má-fé (sem intenção de pagamento) e para a aquisição ou contratação de serviços de luxo de alto valor, estão excluídas do tratamento previsto na legislação.
Uma das questões mais tratadas pelo Capítulo VI diz respeito à transparência das informações prestadas pelo fornecedor ao consumidor no momento da contratação do crédito e na venda a prazo.
Como exemplo, a legislação determina que no momento da oferta do crédito devem ser repassadas ao consumidor – de forma clara, resumida e de fácil acesso – as informações relacionadas à taxa mensal efetiva de juros, ao custo total do contrato, ao direito à liquidação antecipada e não onerosa do débito, o montante das prestações e o prazo de validade da oferta, dentre outras informações relevantes para a tomada de decisão.
Ainda, há vedação expressa na legislação de quaisquer atitudes por parte de fornecedores tendentes a ocultar ou dificultar a compreensão do consumidor sobre os ônus e os riscos da contratação do crédito ou da venda a prazo; e/ou de assediar ou pressionar o consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente quando se tratar de idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada.
Além de estabelecer diversos requisitos e vedações nos contratos de crédito e venda a prazo, como forma de proteção do consumidor, a legislação também estabelece de forma expressa que, cumpridas algumas condições3, são conexos, coligados ou interdependentes o contrato principal de fornecimento de produto/serviço e os contratos acessórios de crédito que lhe garantam o financiamento.
Nesse sentido, caso o consumidor, por exemplo, queria exercer seu direito de arrependimento no contrato principal, será rescindido também o contrato de financiamento a ele relacionado. Da mesma forma, se houver inexecução de qualquer das obrigações e deveres do fornecedor de produto ou serviço, o consumidor poderá requerer a rescisão do contrato não cumprido contra o fornecedor do crédito.
Da conciliação no Superendividamento
Outra novidade trazida pela Lei nº 14.181/2021 foi a inclusão do Capítulo V no CDC, tratando sobre a possibilidade de conciliação nos casos do superendividamento.
A Lei autorizou que, a requerimento do consumidor superendividado, o juiz instaure processo de repactuação de dívidas para que seja realizada audiência
3 ‘Art. 54-F. São conexos, coligados ou interdependentes, entre outros, o contrato principal de fornecimento de produto ou serviço e os contratos acessórios de crédito que lhe garantam o financiamento quando o fornecedor de crédito:
I – recorrer aos serviços do fornecedor de produto ou serviço para a preparação ou a conclusão do contrato de crédito;
II – oferecer o crédito no local da atividade empresarial do fornecedor de produto ou serviço financiado ou onde o contrato principal for celebrado.
conciliatória na qual o consumidor deverá apresentar proposta de pagamento com prazo máximo de 5 anos.
Excluem-se desse processo de repactuação as dívidas, ainda que decorrentes de relações de consumo, oriundas de contratos celebrados dolosamente sem o propósito de realizar pagamento, bem como as dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural.
Caso a proposta seja aprovada pelos credores, a sentença judicial que homologar o acordo deverá descrever o plano de pagamento da dívida e terá eficácia de título executivo e força de coisa julgada.
Vale dizer que a validade dos negócios e dos demais atos jurídicos de crédito em curso constituídos antes da entrada em vigor da Lei aqui mencionada obedece ao disposto em lei anterior.
Da Análise Crítica da Legislação
Em que pese as alterações promovidas pela Lei nº. 14.841/2021, em uma primeira análise, parecerem benéficas ao consumidor, entendemos que alguns pontos críticos merecem ser destacados.
O primeiro deles diz respeito à transferência ao fornecedor da responsabilidade pela educação financeira do consumidor, considerando que a nova legislação impôs às empresas diversas regras para a concessão de “crédito responsável” e atribuiu penalidades ao seu descumprimento.
Acontece que, ao transferir a responsabilidade financeira do consumidor aos fornecedores, a nova legislação acaba por dificultar – ou, até mesmo, impedir – a concessão de créditos aos consumidores, desconsiderando o fato de que o crédito tem importante papel para a própria quitação de dívidas e para garantir a subsistência de diversas famílias.
O consumidor endividado pode, por exemplo, contrair um empréstimo – com parcelas compatíveis com o seu orçamento – para quitar suas dívidas de forma consolidada e à vista, obtendo vantajosos descontos. Não obstante, de acordo com a nova legislação, caso esse consumidor, por exemplo, tenha seu nome incluído no cadastro de proteção de crédito (SERASA/SPC), a instituição financeira não poderá conceder o referido empréstimo, sob pena de sofrer as penalidades previstas na legislação.
Ou seja, a nova legislação deu importantes passos quanto à instituição da educação financeira como política pública, mas acaba por prejudicar o consumidor ao restringir o seu acesso ao crédito, podendo comprometer, inclusive, a obtenção de recursos para o pagamento de suas dívidas ou até mesmo a subsistência de famílias que precisam excepcionalmente desse crédito para condições básicas de sobrevivência (como a compra de alimentos da cesta básica, remédios, dentre outros).
Além disso, uma segunda crítica à nova legislação é a de que a transferência da responsabilidade do “crédito responsável” aos fornecedores será considerada como um novo (e imprevisível) elemento à análise de riscos e precificação no mercado de crédito, implicando a fixação de maiores taxas de juros, exigência de garantias, dentre outros.
Nesse sentido, a restrição do crédito reduzirá o consumo à médio e longo prazo, podendo impactar o sistema macroeconômico como um todo, uma vez que, de acordo com estudos realizados na área de Ciências Sociais UNIVAP, o crédito é um indutor do desenvolvimento, pois estimula o crescimento econômico convertendo e disponibilizando recursos4.
4 “O crédito tem importante papel no processo de acumulação de capital, isto é, transformador financeiro de diversas modalidades, prazos e níveis de risco, sendo essencial no funcionamento dos setores produtivos e também às famílias, portanto os dados financeiros funcionam como um indicador da trajetória futura de crescimento do PIB, influenciando diretamente o nível de poupança das economias”.
COSTA, Erika Alcino Costa. MANOLESCU, Friedhilde Maria Kustner. A IMPORTÂNCIA DO CRÉDITO NA ECONOMIA.
Disponível em: https://www.inicepg.univap.br/cd/INIC_2004/trabalhos/inic/pdf/IC6-5.pdf.
O terceiro e último ponto que merece ser considerado é o de que a nova legislação pode representar uma ofensa aos princípios do pacta sunt servanda (o contrato faz lei entre as partes) e da livre iniciativa econômica5, ao permitir que o ente estatal interfira nos contratos firmados entre particulares para alterá-los/rescindi-los em razão da prevenção e tratamento do superendividamento.
Fato é que a possibilidade de revisão contratual e a consequente relativização do pacta sunt servanda não é novidade no sistema brasileiro, considerando que o Código de Defesa do Consumidor já autoriza a revisão no caso de o contrato conter cláusulas abusivas6.
Não obstante, na hipótese constante da Lei do Superendividamento e do plano de pagamento, há o risco de a alteração contratual se dar de forma unilateral, por intervenção estatal, sem que tenha havido nenhum tipo de abuso ou descumprimento legal pelas partes, o que resulta em interferência ilegal e inconstitucional.
Da Análise Crítica da Legislação
Diante do exposto, é possível concluir que, embora a intenção do legislador tenha sido a de beneficiar o consumidor ao estabelecer regras para prevenir e tratar o superendividamento, o resultado da legislação pode ter um efeito negativo, uma vez que, ao transferir a responsabilidade financeira do consumidor aos fornecedores, (i) impactará negativamente na análise e concessão de créditos aos consumidores, desconsiderando o fato de que o crédito tem importante papel para a própria quitação de dívidas e para garantir a subsistência de diversas famílias; (ii) inclui um novo (e imprevisível) elemento à análise de riscos e precificação no mercado de crédito, implicando a fixação de maiores taxas de juros, exigência de garantias, dentre outros; e (iii) reduzirá o consumo à médio e longo prazo, prejudicando a economia como um todo.